„Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, maslogo de imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos acaminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha existência,tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena matinal. Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projeto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?Mas talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que ametafísica constitua apenas para si um incômodo tão passageiro como uma comichão efémera, talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagarnuma cadência autônoma de berços. Uma das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a inocência, não a inocência inocente das crianças e dospolícias, feita de uma espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou daestupidez, mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dosoutros e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregadoque se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crônico: uma vagaatenção distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.“
„Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há-de ser prejudicial. Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma ação sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica. Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem. Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade — acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objetiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da ação. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou. Diferimos“