„Como é difícil, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, mesmo para um homemadulto e razoável, julgar seus semelhantes sem referência à sua aparência exterior! A beleza é uma carta de recomendação quase impossível de ser ignorada; e com muita freqüência atribuímos ao caráter a feiúra do rosto. Ou, para ser mais preciso, não fazemos a menor tentativa de penetrar além da máscara opaca da face até as realidades existentes por trás dela, mas fugimos dos feios ao vê-los sem tentar sequer descobrir como são realmente. Aquele sentimento de instintiva aversão que a feiúra inspira em um homem adulto, mas que ele tem raciocínio e força de vontade suficientes para reprimir ou pelo menos ocultar, é incontrolável em uma criança. Com três ou quatro anos de idade, a criança foge correndo da sala diante do aspecto de certo visitante cujas feições lhe pareceram desagradáveis. Por que? Porque o visitante feio é “ruim”, é um “homem mau”. E até idade muito mais avançada, embora consignamos deixar de gritar quando o visitante feio aparece, fazemos o possível — a princípio, pelo menos, ou até que seus atos tenham provado impressionantemente que seu rosto lhe contradiz o caráter — para ficar fora de seu caminho. De modo que, se sempre tive aversão por Louiseke, talvez não fosse dela a culpa, mas meu próprio e peculiar horror à feiúra me fizesse atribuir a ela características desagradáveis que, na realidade, não possuía. Ela me parecia rude e rabugenta; talvez não fosse, mas, em qualquer caso, eu assim pensava. E isso explica o fato de eu nunca ter chegado a conhecê-la, nunca ter tentado conhecê-la, como lhe conhecia a irmã.“
„Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há-de ser prejudicial. Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma ação sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica. Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem. Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade — acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objetiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da ação. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou. Diferimos“
„Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe, – para dizer alguma cousa, – que era capaz de os pentear, se quisesse. – Você? – Eu mesmo. – Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim. – Se embaraçar, você desembaraça depois. – Vamos ver.“