„Foi assim que, de uma hora para outra, habituei-me a uma vida sem leitura.Pensando bem, isso era muito estranho, pois, desde criança, minha vida gravitavaem torno dos livros. No primário, eu lia os livros da biblioteca e gastavapraticamente toda a minha mesada em livros. Economizava até o dinheiro dolanche para comprá-los. No fundamental e no ensino médio, não havia ninguémque lesse mais do que eu. Eu era a filha do meio dentre cinco irmãos e meuspa1s estavam sempre ocupados com o trabalho. Ninguém da família seimportava comigo. Por isso, eu podia ler à vontade, do jeito que eu bementendesse. Eu sempre participava de concursos de ensaios literários. O que meinteressava era o prêmio em cupons de livros, e não foram poucas as vezes emque ganhei. Na faculdade, cursei letras, inglês, e sempre tirei boas notas. Amonografia de conclusão de curso foi sobre Katherine Mansfield, e fui aprovadacom nota máxima. Os professores me perguntaram se eu não queria continuarna faculdade e seguir carreira na pós-graduação. Mas, naquela época, eu queriaconhecer o mundo. Sinceramente, eu não fazia o tipo intelectual, e estava cientedisso. Eu simplesmente gostava de ler livros. E, mesmo que eu optasse porcontinuar os estudos, minha família não teria condições financeiras para arcarcom as despesas de uma pós-graduação. Não que fôssemos pobres, mas eu tinhaainda duas irmãs mais novas. Por isso, assim que me formei, tratei logo de sairde casa e conquistar minha independência. Literalmente, eu precisava sobrevivercom as próprias mãos“
„- Axioma: uma doença não é produtiva. Em si mesma, não cria quaisquer produtos de consumo e, consequentemente, não gera dinheiro. Embora seja uma desculpa para muitas actividades, em termos económicos só permite que o dinheiro troque de mãos. Dos doentes para os saudáveis. Dos pacientes para os médicos, dos clientes para os curandeiros. Podemos chamar-lhe uma osmose financeira.[…]- Agora, supõe que és uma empresa chamada SábiaSaúde. Supõe que ganhas dinheiro com as drogas e as técnicas que curam pessoas doentes ou, melhor ainda, que tornam impossível que as pessoas cheguem a ficar doentes.[…]- Então, de que é que vais precisar mais tarde ou mais cedo?- De mais curas?- Depois disso?O que queres dizer com “depois disso”?- Depois de curares tudo o que existe para ser curado.[…]- Lembras-te da má situação financeira em que ficaram os dentistas depois de aquele novo colutório ter entrado no mercado? Aquele que substituía as bactérias nocivas da placa dentária por outras benéficas que preenchiam o mesmo nicho ecológico, nomeadamente a tua boca? Nunca mais ninguém precisou de chumbar um dente e muitos dentistas foram à falência.- E então?- Então, precisarias de mais doentes. Ou… o que ia dar no mesmo… de mais doenças. Novas e diferentes, certo?- É plausível – admitiu Jimmy depois de uma breve pausa. De facto era. – Mas não estão constantemente a ser descobertas novas doenças?- A ser descobertas, não – retorquiu Crex. – A ser criadas.“
„Poema em Linha Reta Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.“