„Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, maslogo de imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos acaminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha existência,tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena matinal. Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projeto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?Mas talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que ametafísica constitua apenas para si um incômodo tão passageiro como uma comichão efémera, talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagarnuma cadência autônoma de berços. Uma das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a inocência, não a inocência inocente das crianças e dospolícias, feita de uma espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou daestupidez, mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dosoutros e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregadoque se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crônico: uma vagaatenção distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.“