„Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.- Casimiro!(…) A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador.Detenho-a: não quero luz.O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:- Madalena!A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.- Madalena…A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a Mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra Mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.(…) Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis, colerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo. O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de Seu Ribeiro e Dona Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão… Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz… Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem.(…)Repito que tudo isso continua a azucrinar-me. O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.“
„Poema – Lágrimas de quem nunca chorouOh Noitemusa dos meus devaneioso sonho inquietante de uma criança solitáriaQue o seu manto friosirva como um cobertor aos vermesque se alimentam do meu cadáver;A minha almavagou até o meu passadosentou-se ao meu lado na minha velha infânciaE proclamou palavrasque não deveriam ser ditasa nenhuma criança- Por que nasceste?Oh praga imunda!Me matei aos dez anos de idadee até hoje eu posso ouviros meus gritos de desesperoEu sempre fui uma criança malditaolhavam-me como um monstroque desejavam matarIsolavam-me dos outroscomo uma praga que corróias entranhas dos santosE fazem das freirasninfas perversasAh tanta dor em mimdores que eu nem mesmo sei explicarE estas doresque me fazem sentir e chorarsão parte de quem souforças que me ajudam a lutarRasguei os meus punhosna frente de todos os deusese os afoguei em meu próprio sangueAgora os seus filhosrecitam os meus poemassobre o túmulo dos seus paisSintam em meus versosa minha dor!Deixem que o diaboque vive em seu peitodestrua o que restou das suas vidaTransformando-os nos sonhosde um futuro que nunca aconteceuNas harmonias poéticasdestas metáforashá verdades tão cruéisQue fariam de Pilatos um santoe de Cristo o próprio DiaboSe os meus poemas são gritos de ajudae as suas leituras pedidos de socorroEntão deixem-me morrer em seu nomederramem sobre o meu cadávertodas as suas doresDancem com as bruxassobre o luar da meia noite!Sintam o pecado fluir em seu sanguecomo os vermes que se alimentaramdos despojos podres de CristoDeixem que a minha loucurainfecte a sua almae mate o seu espiritoViajei entre galáxias vivascheias de vidamas somente na morte das estrelaseu encontrei a mim mesmoEu não sou um homem!tampouco um PoetaEu sou a miséria que vive em seu peitoe o suicídio de todas as suas convicções!“
„Poema – Eclesiastes 12:7Quando eu morrerlancem as minhas cinzas nos rincões do universopara que os átomos que habitaram o meu corpovoltem para as estrelasA verdadeira liberdadeé morrer e transformar-se em nada!Não quero o perdão dos deusestampouco os pecados do infernoQuero transformar a mim mesmono mártir do nadae na representação de tudo que existeA realização de que vou virar póparadoxalmente me tranquilizaEu desejo deixar este mundosem verdades ou convicçõesquero ser enterrado como um homem sem nomepara que os vermes que corroerem meus despojos podresse engasguem com a minha misériaO que eu fui em vidade nada importa aos tolos que me enterraremNão deixarei lembrançaslágrimas ou paixõesJoguem os meus bens materiais aos porcose queimem os meus livros em suas igrejasO suicídio para mim não é o suficiente!Se as suas dores podem ser curadascom uma corda em seu pescoçoou laminas em seus punhossorria como um toloe dancem com os deusespois a sorte está ao seu ladoA origem do meu sofrimentoestá intrínseca na essência da minha almae para me livrar deste tormentodevo sofrê-lo intensamenteaté que os últimos vermes se alimentem das minhas entranhasNo momento do meu nascimentoamaldiçoei a minha própria mãee os deuses esconderam-se em cavernasComo se a misériapossuísse o semblante do diabogargalhadas foram ouvidas no infernoA morte para mimnão é apenas um alivioou um destino inevitávelÉ uma forma de pedir ao mundoperdão por ter nascidoQuando eu morrernão derramem as suas lágrimasfestejem junto aos sátiroscom orgias e palavrõestransformem o meu túmuloem um lugar profano sobre a terrapara que nunca mais pronunciem o meu nome“
„Poema – Lilith ‘’ A Morte é a brasa que incendeia no coração de todos os homensa chama que queima no interior das estrelas e que inevitavelmente queimara todo o universo transformando-o em cinzasContemplo a morte como a brisa que estremece a luz dos meus olhos que aos poucos se apagamEnquanto os meus lábios trêmulos sorriem diante dos sonhos da vida que se esvaem com o sangue dos meus punhosE a realização de que vou virar póparadoxalmente me tranquilizacomo as flores sobre os túmulos ou a brasa da morte que incendeia no coração de todos os homens…’’Eu sou Deussou o símbolo incarnado do amor e do ódiosou o homem pregado na cruzsou o arcanjo banido dos céussou a alma aprisionada no infernoe o cúpido a cantarolar nas canções de amorSou uma criança maldita aprisionada no mundo dos homensuma alma sem história ou destino Eu sou a Deusa que as religiões adorameu sou o Deus que os ateus ignorameu sou o Diabo pregado na cruzeu sou o homem clamando por JesusPregado na cruz ígnea de mim mesmoeu sou o pecado e eu sou a salvaçãoSou a insônia da dor e o pesar da solidãoA depressão já impregnada e sem curaA dor nas noites de insônia A medicação que me mata aos poucos (…)A Poesia de um Poeta louco que abdicou da sua sanidadea escrever os versos mais terríveis Um dia até mesmo o Diaboo abandonou Então ele esqueceu o seu próprio nomeesqueceu os seus próprios versosaté mesmo porque escrevia coisas tão terríveisSem saber quem ele eraDesignou-se a si mesmo como DeusTrancou-se em um quarto escuropregou os seus próprios pés e mãosE com a mão que utilizou para martirizar-seapontou para os céus e gritou – Oh Pai, por que me abandonastes? Ele morreu sem saber ao menos que ele era Deus, O Diabo e o HomemMas ao mesmo tempo o pó que para o nada retornastes…- Gerson De Rodrigues“
„Poema – Uma triste história de amorHá Muito temponos confins do universoexistia uma triste história de amorA Morte se apaixonou pela solidãoe deste amor improvávelnasceu uma triste criançaA Solidão não suportava a sua tristezae todas as noitesela era atormentada por sua terrível melancoliaA Morte ao escutar aquela criança chorarseus olhos embargavam-se de sangueO Universo estava em criseos deuses questionavam a sua própria divindadee a presença daquela inocente criançafaziam os diabos choraremComo em um conto de fadasou em uma poesia de amoraquela criança trouxe a aquele mundo fantásticosentimentos de dorMas que culpa tinha a pobre criança?O brilho em seus olhosexpressavam a morte das estrelase as suas asas tão belaseram negras como o próprio universoA Solidão nunca foi capaz de amaro seu próprio filhoE a sua paixão pela morteera como uma sinfonia perfeitaA Morte não roubava a sua Solitudee a solidão não entregava a Mortesentimentos de dorA Sinfonia de um relacionamento perfeitodeu origem a uma criança malditaCom o universo em desequilíbrioa solidão pegou o seu próprio filho em seus braçose para não sacrificar a sua solitudea arremessou no mundo dos homensEssa criança sou eu…A Minha alma foi aprisionada no corpode uma criança humanaeu cresci no lar de uma famíliaque nunca foi capaz de me amarCaminhei sozinho durante noites solitáriase as únicas coisas que me atraiameram as sinfonias das estrelas ao se apagaremEu sou o filho bastardo da solidãoe não há nada neste mundocapaz de preencher o vazio que existe em meu peitoSe não fosse a música,o diabo que vive em mim já teria enlouquecidoEu passo noites de insônia acordadoescutando as mais melancólicas sinfoniasesperando que em uma bela manhãa morte venha me encontrarDeitado submerso em uma banheirarepleta de águaeu vejo o sangue dos meus punhosfundirem-se com a canção das estrelasA Solidão chorava por ter abandonado o seu próprio filhoe aquela pobre criançaque a muito tempo foi arremessada no mundo dos homenssorri pela primeira vezsubmersa em uma banheira de sangue“